terça-feira, 7 de abril de 2015

Billie Holiday fecha século de talento e dor

Nascida há cem anos, maior cantora da música popular ainda influencia qualquer artista que conhecer sua obra

Prostituída e vítima de surras e estupros, americana se tornaria diva do jazz até morrer de cirrose, aos 44 anos
THALES DE MENEZESEDITOR-ASSISTENTE DA "ILUSTRADA"
Se existisse um questionário de desgraças para as pessoas preencherem, uma cantora americana teria colocado vários "x" pela página, talvez assinalando todos os itens.
Billie Holiday (1915-1959) passou por infância miserável, abusos sexuais em casa, prostituição ao 14 anos, surras e estupros de namorados, amantes e músicos que a acompanhavam, alcoolismo, consumo de drogas pesadas (principalmente heroína), tudo isso em 44 anos de vida.
Mas Billie, que completaria cem anos nesta terça-feira (7), também teve tempo de se tornar a maior e mais influente cantora da história do jazz. Alguém disse "jazz"? Não, Billie Holiday foi a maior cantora da história da música popular.
No fim da adolescência, trocou a prostituição pela música (embora no início da década de 1930 muita gente considerasse as duas atividades igualmente degradantes).
Fez sucesso por causa da esperteza. Billie inovou totalmente o modo de cantar, e fez isso instintivamente.
Começou a carreira na época que o microfone individual para o cantor se estabelecia como novo padrão em shows e gravações de discos. Até então, todos berravam as canções como se estivessem em um teatro, para serem ouvidos até na última fila.
Com a voz que ela chamava, delicadamente, de "minha merda de voz", Billie percebeu que a potência do microfone trabalharia a seu favor. Assim, cantava com muita emoção, para compensar o pequeno alcance vocal.
Sua carreira foi voltada para singles até o início dos anos 1950, quando passou a gravar álbuns. Ainda na década de 1940, álcool e drogas transformaram a cantora em uma artista com seguidos problemas para cumprir uma agenda.
Foi detida muitas vezes por policiais --e chantageada por eles--, foi parar em hospitais no meio de madrugadas.
Quando ela morreu, de cirrose, deixou um disco autoral pronto, gravado já doente, com letras escritas no fundo do poço existencial. O LP "Last Recordings" saiu ainda em 1959. Ouvir suas 12 faixas não é algo agradável.
Os cantores Cassandra Wilson e José James lançam neste mês álbuns de tributo à cantora. "Coming Forth by Day", dela, é reverencial. "Yesterday I Had the Blues", dele, não é. Soa quase iconoclasta.
Mas ninguém que ainda vá comprar seu primeiro disco de Billie Holiday precisa se importar com tributos muito inferiores a tudo que ela fez.
Abaixo, quatro sugestões de discos para capturar o essencial da cantora. Mas pode ser difícil escutar esses álbuns e box sem querer mais.
Com o cuidado de não se confundir com dezenas de coletâneas repetitivas, a ordem é ouvir Billie Holiday. Talvez por mais cem anos.
Folha, 07.04.2015
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